quinta-feira, 12 de março de 2009

Sur le fil


Algumas coisas acontecem.

Mas, outras ocorrem vagarosamente, sobre um fio de tempo longo e preciosamente esculpido de horas intermináveis. Essas, sem sombra de dúvida, são as piores. Em geral, são aquelas que passam despercebidas aos olhos.

Fora o último dos nove filhos do homem de bigode farto, que morara na casa vermelha de esquina com a avenida principal. Bairro quase tranquilo, vida meio pacata, crianças na varanda, no jardim, nas telhas quebradiças. Pé engessado.

Começou a vida normalmente, estudou regularmente, sem precisar ser um aluno brilhante, recebeu carinho, amor de quase todos os lados, trabalhou em pequenos ofícios para juntar dinheiro e comprar uma caixa de ferramentas nova, para o pai.

No semblante fechado, os olhos permaneceram estáticos com o presente. O bigode não tremelicou com a gargalhada costumeira, ao se satisfazer com algo estupendo. Nada! Apenas a inércia nos gestos e na face taciturna do pai.

- Venha, Alceu! Seu pai vai falar com o vovô, agora.

Dez anos. Os olhos de soslaio miraram a mão do pai pegar o telefone e os ouvidos assimilaram vagarosamente a risada forte do homem.

- Papai!

Os anos correram iguais: casa, escola, brincadeiras, natal, ano novo, ano velho, ano novo, casa, trabalho, amigos, namoradas, casa, trabalho, noiva, casa, trabalho, esposa, casa, trabalho, esposa, filhos, casa, trabalho, esposa, filhos, contas, casa, trabalho, esposa, filhos, contas, derradeira primavera.

Ano de 1977.

O corredor era longo demais, escuro e frio o bastante para que suas passadas fossem tão firmes e corajosas o suficiente para ultrapassar toda aquela barreira de medo, ressentimentos e sensibilidade. Os burburinhos na sala, os sussurros na sala, as empregadas, os enfermeiros, mamãe.

- A tosse dele...

- Mas, a tosse dele...

- E a tosse dele...

A tosse! Ela transpassava voraz o corredor e chegava aos ouvidos de Alceu, novamente. De soslaio, o corredor escuro, as paredes úmidas, a luz do quarto abrindo, a meia luz, a porta de mogno envernizado. O instante impossível.

- Amanhã de manhã eu volto, mamãe.

- Mas, Alceu...

- Amanhã de manhã... Antes do trabalho.

Pela manhã, sobre a linha tênue, o ritmo do ciclo orgânico e a morte retumbaram, culminando não em um simples fenecer, mas no sim à terra, na fidelidade à terra. O coração bombeu, tombou, caiu, prostrou-se em milhões de sofrimento. O bigode farto no rosto magro e senil. A boca se escondia pela camada grossa de pêlos, tiraram-lhe os óculos, vestiram-lhe o terno que comprara em abril, sapatos engraxados, inúmeros cravos brancos e aquele cheiro intragável de cravos, em meio à presença da ceifadora, o gosto das lágrimas tardias de Alceu, o abraço ao corpo quente da mãe, os lenços com cheiro de macadâmia, o sabor da hortelã de domingo, a mão pesada do pai nos ombros dele, ensinando-o a bater um prego com o martelo, aquele bolo de laços que não conseguia desatar na garganta, a fagulha de tempo finda, finita e posta.

A tosse ecoava nos pensamentos de Alceu.

Balbuciou algo, perdido nos escombros da infância, que só conseguiu dizer-lhe pelo olhar de soslaio, mas que não fora visto. O eco sobre o fio. O eco sobre a terra. O eco sobre o mármore. O eco na expansão do arrependimento. O eco carcomendo a mágoa e o desespero. Nada mais depois disso.

O eco!


Ivna Alba

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