quarta-feira, 12 de maio de 2010

Já me fiz de sua pele

Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas
Jacques Brel - Ne me quitte pas


- Alavanca tua dor, Gomide! - rugiu a velha de dentes amarelados.
A porta bateu tal qual o estampido da bala que atingira seu corpo e o desfizera à beira do mundo, da sarjeta e de seus últimos instantes de lucidez.
Quem era ele, naquele minuto? Fez-se a pergunta quando viu Anaclélia em curvas e desapegos, em meio ao salão de meia luz, onde o bolero reinava. Ela reinava sobre tudo e todos. Naquele momento, ele se transformou em seu atento e mais sincero amante.
Padecia de ciúmes, raiva, ódio e amor. Um amor louco, que durante meses, nenhum par de calças poderia chamá-la para dançar, mas ela pisava em sua honra e dignidade, mostrando que podia mais que ele. Gomide era riquíssimo, mas humilde. Um homem que não se negava o bom coração e amabilidade, mas ao se tratar de Anaclélia, a história era outra.
Em seis meses, Gomide conseguiu levar Anaclélia para um apartamento longe do subúrbio, onde morava. Abandonou a família aos poucos, e dividiu a fortuna para os quatro filhos, restando boa parte, ainda, para os caprichos de sua donzela de pernas torneadas e macias.
A mulher tinha cheiro de camélia e desfrutava da mais alta mordomia que o pobre diabo poderia lhe proporcionar.
Recordou-se de tudo isso ao ver a mala com dois pares de roupa, o sapato gasto e o meio-fio lúgubre, onde a água da chuva corria desesperadamente. Olhou os postes, alguns felizes, outros chorosos. E ele? Que seria? Começou a andar, vagarosamente. A velha o acompanhava da porta do edifício luxuoso.
- Por que tinha que trazer sua mãe, Anaclélia?
- Por que, benzinho, ela não podia ficar naquele cortiço, oras!
- Eu compraria uma casa para ela, onde quisesse. Você sabe que eu posso.
- Quero ela pertinho de mim, como você, benzinho.
E ele se dava por vencido. Tão vencido, como ao entrar naquela noite, em casa, viu Anaclélia nos braços de um homem meia-idade, como ele, entretanto com mais vitalidade e brio. Gomide se deixou decair. Vivia para os gostos e prazeres da morena. Era o chofer, o carregador, o cozinheiro, o copeiro, o tutor e o cachorro.
- Compra esse.
- Mas, esse não está do meu gosto, morena.
- Está na promoção. Você tem que economizar, benzinho. Quinta-feira eu tenho que ir ao salão, e meu amorzinho sabe que lá eu faço tudo, né?
- Sei sim. Mas...
- Não me quer bonita para você, é?
- Não é isso, morena...
- Eu sei seus ciúmes. Ciumento! Você me amordaça, me prende, só me quer para você. Sou sua prisioneira, agora?
- Não falei isso, Anaclélia!
- Já me chama pelo nome? Tem outra? Só me chama pelo nome quando está com raiva. Eu sei que você vai me deixar.
- O que?
- Pensa que não vi seus olhos comendo a mulher de vermelho, lá no salão?
- Que?
- Isso mesmo... eu vi tudo...
- Você estava dançando com aquele capitão...
- Ah, eu sabia que essa seria sua desculpa. Sempre isso... Você com aquele... Você com esse... Estou farta, Gomide!
- Mas, morena, morena... Morena!
Ela saía, armava tudo e o deixava rastejando pelas lápides de sua alma, já tão fustigada e cansada de toda aquela vida desmazelada e serviçal. Gomide a amava de forma louca e ensandecida.
Caminhou até um banco. A areia da praia iluminada pela lua, o mar com brilhos de carnaval lhe anunciavam o final daquela quarta-feira de cinzas.
Abriu a mala e tirou a echarpe de seda bordô. Cheirou-a e soluçou desesperadamente.
- Lava-me, morena! Enxuga-me, morena! Diz que me ama e eu esqueço a porta fechada. Fala que me ama, que volto a respirar pelo mesmo póro que me negaste aberto!

Ivna Alba

segunda-feira, 10 de maio de 2010

sábado, 8 de maio de 2010

Os passos

Ouvia-se pela casa, na madruga, passos e a mão sussurrando na parede, o atrito por entre digitais e formas finas.
"O que dói mais - dizia a mulher franzindo a testa, para não cair em prantos - é que não os ouço agora".
Saudade enternecida e ensurdecedora... Completamente voraz.

Ivna Alba

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A estátua de Árgona

Em frio mármore esculpido. Precisamente escalpelado e introduzido na água, cresceu Árgona. De belos seios, curvatura paradoxal e de tez prateada ao luar.
Por entre os dedos, segurando os véus que lhe revestiam o púbis e parte das pernas, em todas as tardes de densa neblina, recebia flores, frutos e o sangue de animais lhe decaíam entre as mórbidas carnes.
Árgona nasceu sem saber amar, apenas conhecendo o "ser amada". Em bela semana primaveril, quando os júbilos de pássaros e farfalhar de folhas se ouviam perenes, sentiu sua primeira flechada. Cravou-lhe o peito juvenil, outra raspou-lhe os olhos e mais uma sentou seu véu em mil pedaços, em pleno espaço e em meio aos prantos que não poderiam ser ouvidos, Árgona caiu prostrada por outro tremor.
Ela que nunca olhara para cima, agora enternecia-se com os olhos azuis e pueris de um jovem de 25 anos.
A terra a sobrepôs.
Após cem anos, seu seio ainda permanece intacto.

Ivna Alba

ELE ESTÁ CONCORRENDO!!!!