terça-feira, 26 de maio de 2009

O romper dos sons

- Onde?
- Naquele restaurante chinês, no segundo piso do shopping.
- Aquele da semana passada?
- É. Tá bom para você?
- Bem, se você quer lá, pode ser sim.
- Quero saber se fica bom para você.
- Fica, mas tem que ser uma hora cravada, tá?
- Tudo bem. Pelo menos, você conseguiu se decidir em algo.
- De novo, Ana Lúcia? Começou cedo?
- Não, não. Foi apenas uma observação... Nada demais.
- Tá certo.
- Até mais tarde, Ângelo!
- Até, meu amor!


******************************* Ângelo

Desligara o telefone.
Ela havia sido mais rápida que ele, ou apenas os beijos de despedida não fizessem mais parte do cansativo repertório dela, assim como os outros trejeitos carinhosos.
Ele deixara beijos ao léu, para que o colega ao lado não suspeitasse que a mulher amada fora objetiva e clara.
E foi além, disfarçando um derretimento em formas de juras de amor dela por ele.
Botou o aparelho no gancho, arrumou os papéis, o mouse-pad, a cadeira, o teclado do computador, soltou um longo suspiro, constatando que tudo estava em prumo e ele no rumo.


****************************** Ana Lúcia

- Até mais tarde, Ângelo!
- Até, meu amor!
A mão e o braço deslizaram inconscientemente até o aparelho e o estampido do fone no gancho lhe soou forte como um gongo.
Olhou para o relógio: faltava meia hora para o meio-dia, levantou, pegou a bolsa, o casaco e deixou tudo como estava em sua cabeça.
- Doutora Ana Lúcia?
- Sim, sou eu, pois não?
- Correspondência. Preciso que assine aqui.
O papel cheio de códigos, a barra de numerais embaralharam a visão. Pensou em Ângelo, pelo menos naquele dia e situação não deveria deixá-lo esperando, e sua consideração final mostrar-lhe-ia todo o respeito que nutrira uma vez por aquele redator de casos policiais.
"Redatorzinho amarelo..." - pensava consigo e se ria de todo o apelido que a levara até ali, exatamente àquele ponto entre a porta do elevador, o papel cheio de números, a caneta e o suor requentado e gorduroso do carteiro de olhos cor-de-mel e dedos borrados de tinta azul.
- Doutora?
- Por favor, deixe com minha estagiária, ela assinará.
- Mas...
A porta do elevador fechou súbita, deixando o mau cheiro para trás, recortado por muitos andares, esquecido pelo aço da cabine e tijolos embalsamados de irrealidade e concreto.


******************************Da gênesis

Ana Lúcia casou-se "eternamente" apaixonada por Roberto.
Advogada e engenheiro civil.
Ela continuou o que era, ele transformou-se em um obeso e poderoso empresário do ramo da construção.
Casaram-se e decidiram contribuir com a espécie humana, mas ele era estéril. Não que ela se importasse nos primeiros dois anos, mas ir aos chás de bebês das amigas lhe levava aos prantos, sempre que entrava no carro, na volta para casa.
Roberto entendia os olhos inchados e as monossílabas.
Ana Lúcia fartava-se em lencinhos de papel, e ao fim lá estava o calmante e dezenas de lenços amassados no cesto de lixo do banheiro. Por sua vez, o marido engolia o cowboy cinco vezes seguidas e pensava em qual seria o jogo do domingo, ou o seu mais novo empreendimento.
Durante cinco anos, dois meses, três semanas e um dia, Ana Lúcia sofreu e trabalhou, até o momento em que conhecera Ângelo - o redatorzinho amarelo - na festa de inauguração do luxuoso residencial de Roberto.
O jornalista e a advogada encantaram-se de primeira piscadela, até o último beijo daquela noite. Porque ambos não tiveram ressalvas.
Desejo é desejo e a carne é fraca.
O caso ia bem, até que ela engravidou. E mesmo sem saber, abortara na terceira semana de gestação.
- Seu útero está retorcido, Ana.
- Como assim?
- Você abortou.
- Impossível! O Roberto é estéril.
- É difícil, mas as vezes pode acontecer de vingar em uma ou duas tentativas.
- Grávida?!? - ela sentiu o rosto ferver, uma sensação de vazio e frio tomou-lhe conta do peito e entranhas. "Incompetente, impotente!" - um misto de consciência lhe xingava e devorava o resto de amor próprio.
Ali mesmo ela abriu os pulmões e dilacerou-se.
A médica tentou reconfortá-la, porém foi em vão. Calmante e lencinhos: a receita de Ana Lúcia contra os infortúnios, e que desta vez não resultou em nada.
A crise foi forte.
Os braços de Ângelo a confortariam.
E todo penso é torto. Ele não fez alardes, nem entrou em choque, apenas recebera a tragédia como quem ouve sobre a alta do dólar.
- Isso não daria certo, meu amor.
- O que?
- Ana, você é casada.
- E o que tem?
- Ainda quer que eu lhe explique?
- Ângelo, era um filho nosso.
- Ana, não existe espaço para um filho na nossa relação. Eu já lhe falei sobre isso.
- Como é? Acabo de perder nosso filho e você é insensível ao ponto de vir com essa conversinha racional para cima de mim? E o seu amor profundo e incondicional? E suas declarações? Onde estão, hein Ângelo? Estou sofrendo, sabia? Mas você liga? Não! Você não liga!
- Mulher, para se ter um filho é preciso ser racional, coisa que você não está sendo agora.
- Seu estúpido, grosso, imbecil, desumano!
- Ana! Pára e me ouve!
- Não quero ouvir nada de você. Nada!
- Ana, meu amor, me escuta!
- Largue meu braço, senão eu lhe mordo! A partir de hoje pode cantar em outra praça, seu jornalista medíocre!


***************************Cantando na mesma praça

Meia dúzia de ramalhetes brancos e vermelhos durante um mês e Ana Lúcia voltou a frequentar os lençóis do redatorzinho amarelo.
Ela esvanecia de prazer, mas os tempos mudaram demais.
Os sonhos eram quebrantáveis bolhas de sabão e ela sabia da outra face do amante.
Voltara apenas, porque em casa perdera a competição e os poucos carinhos para o futebol, o cowboy e as garotinhas da internet.
- Venha viver comigo.
Ela ficava em silêncio e sempre arrumava uma outra história ou desculpa, enquanto Ângelo lhe entornava dezenas de perdões.
Aquilo estava amargo e dissonante demais, para a sua Berceuse.


***************************O quebrantável romper dos sons

Cinco minutos atrasada.
Ele chegara e servia-se, enquanto conversava com uma moça esguia à sua frente. Se tivesse uns vinte e oito anos era muito. Ambos riam entusiasmados com toda e qualquer bobagem.
Ana Lúcia não se atreveu a dar mais nenhum passo e ficou estagnada, observando e, por um instante, mais breve que fosse, ela sentiu-se confiante para fazer o que viera fazer ali.
Mais dois minutos, a mulher de 36 anos saía do shopping e se sentia plena.
Ele abria o bilhete entregue por um rapaz da limpeza da praça de alimentação.
Do riso ao mais profundo silêncio.
Ângelo quedou-se absorto pelas palavras secas e duras, perdendo o rumo e o apetite.


****************************Os sons

Em abril, do ano seguinte, Ana Lúcia abria a porta do seu novo apartamento, trazendo nas mãos várias sacolas de supermercado.
Cantarolava "A felicidade" e nunca fora tão feliz com sua barriga de nove meses.
Ouvia músicas em alto e bom som.
Comia brigadeiro na panela.
Sorria para o espelho, apalpando os seios e pensava: "Como haviam crescido".
Chorou a plenos pulmões ao sentir seu filho em seu peito, pela primeira vez.
Desta vez, sem receitas contra infortúnios.


Ivna Alba

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Trague, mas não solte!

Esse título precisa tanto de uma exclamação, quanto preciso de uma paixão hoje. Paixão? Não, eu diria de um amor que seja possível. Não me interpretem tão mal assim. Alguns erram hoje, acertam amanhã e assim a vida é feita de momentos felizes, eternos, ruins e horrendos.
Quiçá eu tenha acertado na dose, mas errado o alvo, da primeira vez. E agora?
Já se permitiram não amar, alguma vez? É o que pode existir de mais desunamo na vida. E o pior, destrutivo consigo mesmo.
Se é para ficar sozinho, que se faça, mas nunca se diga: - Por hoje chega! ou: - Fechado para balanço!
Se é balanço que se quer fazer, o faça, mas deixe novas mercadorias entrarem na sua bodeguinha, talvez uma delas faça sucesso e lhe renove os ares, dê a você novas esperanças, lhe faça regozijar um pouco mais a vida e dos momentos felizes e inesquecíveis.
Estou deixando que ele me bata à porta dessa vez.
Acredito merecer um pouquinho de sorriso, diante de dias tão pesados.
E onde fica o trago nessa parte?
Exatamente nisso: viver o possível, sabendo que ele é impossível.
Contudo, será realmente impossível? E quem o saberá?
A construção de conjecturas em minha mente é como a Torre de Babel. Parece nunca acabar e some em meio às nuvens que carrego dentro do peito.
Pelo menos, dessa vez, sei que estou me permitindo ao amor, à paixão, mas sem chegar a tão alto mar.

Ivna Alba