segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Abertura - "Calem o silêncio das paredes!"

Eu escutei você falando:
- Só palavras, só palavras, só palavras...
Num ritmo e cadência constantes, promovendo um arrebatamento inconstante, de uniformidades lacônicas, em meu peito e meu ventre.
A carne palpita! A carne maldita! Tua carne maldita, Abrãao! A carne se quebra, se mela, se esvai, se entrega, congela, espera, se parte, se rasga, na entremela do dente, respiração arfante, possante, sentido de entrega. E nesse emaranhado se revela a alma da megera respulsiva que carrego nas entrenhas.
Maldita e lânguida, parca e renegada carne tua, Abrãao!
Abraça-me e expurga-me de tua vida e de tua lábia, Abrãao!
E, enquanto me exorcisas, deixa-me ouvir tua voz falando, lentamente:
- Só palavras, só palavras, só palavras...

Ivna Alba

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

C'est l'époque

C'est l'époque terrible de la mort.
Est-poisons personne.
Gouttes d'eau.
La douleur à s'estomper.
Le sang du coeur.

Ivna Alba

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Ele

Veio devagar.
Hoje o vejo quase deitado na cama, olhos fixos no livro negro. Duas contas que vem iluminando, desde o interior, brilham, ofuscam sua vista e se deitam embriagadas, nas altas horas da noite.
Aqueles gestos sempre tão calmos, aquele beijo sempre querendo tudo e querendo mais...
Ele veio e ficou!
Ele é meu humano!

Ivna Alba

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Poema para uma menininha

Menininha de perninhas tortas, eu queria lhe tecer um mundo de cores, amores e vida!
Eu queria, menininha, mas não consegui.
Não, menininha, não chores!
Apesar da noite escura, eu te trouxe as estrelas; apesar da tarde chuvosa eu te dou um arco-íris; apesar do beijo frio, eu te dou a minha estrada...
Corre, menininha! Corre e me traz uma flor.
Pode até ser uma margarida...
Vai, menininha! Deixa que a cadeira de balanço faça o vai-e-vem com o vento!
Vai, menininha, que o mundo não foi meu, mas vai cair aos teus pés!
Vai, menininha!
Se precisar chorar, me diz que eu choro por ti!
Vai, meninha...

Ivna Alba

Toda boca tem sua focinheira

A pior mordaça é a do silêncio dos sentimentos, que não querem se pronunciar...
Que não se devem propagar!
E estamos fadados a nos prolongar nessa ação de emudecer, ao passo de que quando menos se espera, o que se poderia falar, não sai. Sente o nó? Sente aquele bolo preso na garganta? Aquelas meras e vãs palavras, presas de forma fria e calculada na campainha, fazendo uma leve cócega na língua? Sente tudo isso?
Eu sei, tantas e quantas coisas você gostaria de dizer, mas não o faz, sem nem entender o porquê.
O verbo volta ao peito, este tranca o gosto e a vida traga e bebe essa ânsia, esse verbo, e o converte à carne violentada. Com o tempo ela ficará uma palha dura, ressecada e sem sabor...
A pior mordaça é a do silêncio dos sentimentos que não são pronunciados, sem nem ao menos sabermos o porquê do vazio.

Ivna Alba

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ai, Isaura!

Ai, Isaura!
Isaura e suas unhas vermelho sangue, naquelas mãozinhas tão frágeis e apáticas, que tremiam sem forças até para segurar uma xícara de porcelana.
Quando ia para a missa aos domingos punha um vestido de flores de tons pastéis, muito esvoaçante, e corria para a beira da calçada, segurando o chapéu com as mãozinhas frágeis de unhas vermelho sangue.
Ai, Isaura!
Aquela anágua aparecendo sorrateiramente pela barra da saia do vestido de seda. Aquelas meias finas, de textura quase imperceptível, em meu tato, rasgando um gemido fino e um "ui!" de sua pequena boca cor-de-rosa... em meio a um entardecer... em meio a um desvanecer aturdida e absorto aos seios trêmulos e intactos de Isaura.
À noite, me vinha despida de vergonha e medo, enlaçava-me em beijos, carícias, sufocando meu mais profundo desejo em meio às coxas brancas e faceiras.
Isaura me traía, me comia, me despedia, me botava nu em lágrimas atrás da porta, e pela manhã não lembrava de nada, muito menos das juras que me tinha feito.
Eu, bobo, tolo de mim por completo, entrava em seu mundo e sempre caía nas suas mãos de unhas vermelho sangue.
Ai, Isaura!

Ivna Alba

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

É desse fel que sinto falta

- Sabe aquelas horas em que estiveste fazendo palavras cruzadas?
- Hum...
- Sabe aquelas tardes em que estava sentado à beira da mesa, consertando o rádio-relógio?
- Para não perder a hora do trabalho.
- Sabe aqueles dias que acrescentavam mais uma primavera aos nossos lençóis limpos e brancos?
- Sei. Que mais?
- Até ali, eu amava você...
O velhote parou, levantou sem dar uma só olhadela para a velha e saiu do terraço, deixando a tarde absorver tudo e a noite vomitar estrelas.

Ivna Alba