Biancha - Dos sonhos e amores (im)possíveis
Éramos uma grande parte do mundo
e não sabíamos. Ainda lembro-me daquele primeiro toque rasgando a pele, mas não
percebi a profundidade da ação, execução e finalização do intrínseco cheiro de
humanidade que havia em mim e em meus antepassados.
Cheiro
de pele!
Maria
dosou-me os brados, esfacelou minha carne e meus ossos tecendo-os novamente
parte a parte, recriando em mim um novo conceito. Por um lado, vez e em teses,
Maria deu-me o sopro, a vida, rearranjando-me em usos e desusos.
Aquela
senhora de olhos azuis recriou-me para seu marido que voltaria da guerra: pura
ilusão para uns, uma verdade tangível para ela. Antonio não voltaria, mas o
cuidado e o amor que pusera em mim, tricotaram em meu rascunho a serenidade de
uma existência em paz.
O
outono se dissipou em branco e as flores se desfiaram por cima do sol. Assim,
estava da forma certa para o casal que só existia no porta-retratos e no
músculo pulsante da velha mulher. Embebida em um amargo suco, cortou-me
novamente as formas e construiu-me em nova aparência.
-
Que diabos, mulher! – pensava com gritos afogados nas agulhas metálicas de seu
sonho, ou devaneios sensíveis.
Quando
veio seu pranto, enxuguei-o, sem precisar falar um só A. entendi naquele instante
que o envelope amarelado, em cima da lareira, agora queimava para aquecer sua
solidão, que dali em diante passaria a ser sua amiga constante.
Depois
daquele envelope aberto e queimado, Maria se foi e sua casa invadida pelos
poucos que sabiam que ainda morava ali. E como se nada precisasse ser
anunciado, um garoto tomou-me pelo corpo inteiro.
-
Toma-me! – pensei que com ele os dias se abririam em novidades terríveis, mas
eu queira esse risco, era quase um desejo obsessor.
-
Bella! – disse olhando-me despida.
Ângelo
pôs a mão em meu ventre, peito e nunca mais me largou... Até o instante em que
partira deixando-me na casa de Carmem, portuguesa farta de ancas e pele. Dona
de um pensionato em Lisboa recebia os mais estranhos pagamentos por hospedagem.
Não seria de estranhar receber-me, também.
-
Ora gajo, que tu tens aí?
Angelo
relutou, porém tentou falar com seu português italianado, que nada poderia
oferecer, a não ser quella biancha.
Carmem
recolheu-me meio desdenhosa de que cumpriria meu papel, entretanto deixou as
três noites de Angelo em troca de meus usos e desusos. Nunca mais senti o corpo
daquele italiano cheirando a amêndoas torradas, em meio às tardes douradas
sicilianas.
A
vida não me perdoou por odiar Carmem, e a maldita também não simpatizava com
minhas feições, porque tinha um coração e tive amores, coisa que jamais
conhecera.
No
dia em que deixei a pensão suja da portuguesa quebraram garrafas, mesas, copos
e o vinho enlameou todo salão.
Veio
o silêncio de dias e ao acordar deparei-me em um escuro sem tamanho. Um rapaz
de vinte e poucos anos me olhava e sorria. Uma luz forte travou-me os sentidos.
Tentei dar vida ao novo corpo que me abrigou. Eram novos tempos. As mudanças
precisavam encontrar o seu arranjo exato, dentro daquele outro compasso.
Pior
que o timbre português da velha, era não saber quem me tomava agora, contudo o
que ele sentia por mim era paixão e esmero. Fui deixando-me ir, até o dia que
compreendi:
-
Vou pegar essa aqui, João!
-
Não! Essa não!
-
Por que essa não?
-
Porque essa eu comprei em um brechó de Lisboa. Estimação!
-
Ih! Está com um furinho aqui.
-Onde?
-
Aqui...
O
rapaz abriu e tocou minha pele branca, fazendo-me arrepiar as linhas.
Segurou-me pelos ombros, sorriu e disse:
-
Bella!
Suspirei
contente e saudosa:
-
Ai, Angelo!
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