domingo, 9 de dezembro de 2012

Escapes


De repente, o cigarro passa a não ter mais gosto, qualquer bebida desce quadrada e, mesmo assim, você precisa de tudo isso. Nunca esqueci o que uma amiga disse em uma noite que prometia o pior e, realmente foi: - A gente precisa de uma válvula de escape.

Escape para fingir que tudo está indo bem. Escape para perceber que nada mais faz sentido, mas mesmo assim, escape para sorrir, para iludir, sermos iludidos e nos deixarmos levar nessa lenta marcha rumo ao triunfo da morte.

Tem-se um legado de vozes vãs, gritos abafados e demasiada fome de tudo e não poder ter nada!

Escapes... Tudo o que nós temos!

sábado, 28 de abril de 2012

Biancha - Dos sonhos e amores (im)possíveis


             Éramos uma grande parte do mundo e não sabíamos. Ainda lembro-me daquele primeiro toque rasgando a pele, mas não percebi a profundidade da ação, execução e finalização do intrínseco cheiro de humanidade que havia em mim e em meus antepassados.
                Cheiro de pele!
                Maria dosou-me os brados, esfacelou minha carne e meus ossos tecendo-os novamente parte a parte, recriando em mim um novo conceito. Por um lado, vez e em teses, Maria deu-me o sopro, a vida, rearranjando-me em usos e desusos.
                Aquela senhora de olhos azuis recriou-me para seu marido que voltaria da guerra: pura ilusão para uns, uma verdade tangível para ela. Antonio não voltaria, mas o cuidado e o amor que pusera em mim, tricotaram em meu rascunho a serenidade de uma existência em paz.
                O outono se dissipou em branco e as flores se desfiaram por cima do sol. Assim, estava da forma certa para o casal que só existia no porta-retratos e no músculo pulsante da velha mulher. Embebida em um amargo suco, cortou-me novamente as formas e construiu-me em nova aparência.
                - Que diabos, mulher! – pensava com gritos afogados nas agulhas metálicas de seu sonho, ou devaneios sensíveis.
                Quando veio seu pranto, enxuguei-o, sem precisar falar um só A. entendi naquele instante que o envelope amarelado, em cima da lareira, agora queimava para aquecer sua solidão, que dali em diante passaria a ser sua amiga constante.
                Depois daquele envelope aberto e queimado, Maria se foi e sua casa invadida pelos poucos que sabiam que ainda morava ali. E como se nada precisasse ser anunciado, um garoto tomou-me pelo corpo inteiro.
                - Toma-me! – pensei que com ele os dias se abririam em novidades terríveis, mas eu queira esse risco, era quase um desejo obsessor.
                - Bella! – disse olhando-me despida.
                Ângelo pôs a mão em meu ventre, peito e nunca mais me largou... Até o instante em que partira deixando-me na casa de Carmem, portuguesa farta de ancas e pele. Dona de um pensionato em Lisboa recebia os mais estranhos pagamentos por hospedagem. Não seria de estranhar receber-me, também.
                - Ora gajo, que tu tens aí?
                Angelo relutou, porém tentou falar com seu português italianado, que nada poderia oferecer, a não ser quella biancha.
                Carmem recolheu-me meio desdenhosa de que cumpriria meu papel, entretanto deixou as três noites de Angelo em troca de meus usos e desusos. Nunca mais senti o corpo daquele italiano cheirando a amêndoas torradas, em meio às tardes douradas sicilianas.
                A vida não me perdoou por odiar Carmem, e a maldita também não simpatizava com minhas feições, porque tinha um coração e tive amores, coisa que jamais conhecera.
                No dia em que deixei a pensão suja da portuguesa quebraram garrafas, mesas, copos e o vinho enlameou todo salão.
                Veio o silêncio de dias e ao acordar deparei-me em um escuro sem tamanho. Um rapaz de vinte e poucos anos me olhava e sorria. Uma luz forte travou-me os sentidos. Tentei dar vida ao novo corpo que me abrigou. Eram novos tempos. As mudanças precisavam encontrar o seu arranjo exato, dentro daquele outro compasso.
                Pior que o timbre português da velha, era não saber quem me tomava agora, contudo o que ele sentia por mim era paixão e esmero. Fui deixando-me ir, até o dia que compreendi:
                - Vou pegar essa aqui, João!
                - Não! Essa não!
                - Por que essa não?
                - Porque essa eu comprei em um brechó de Lisboa. Estimação!
                - Ih! Está com um furinho aqui.
                -Onde?
                - Aqui...
                O rapaz abriu e tocou minha pele branca, fazendo-me arrepiar as linhas. Segurou-me pelos ombros, sorriu e disse:
                - Bella!
                Suspirei contente e saudosa:
                - Ai, Angelo!