sábado, 28 de abril de 2012

Biancha - Dos sonhos e amores (im)possíveis


             Éramos uma grande parte do mundo e não sabíamos. Ainda lembro-me daquele primeiro toque rasgando a pele, mas não percebi a profundidade da ação, execução e finalização do intrínseco cheiro de humanidade que havia em mim e em meus antepassados.
                Cheiro de pele!
                Maria dosou-me os brados, esfacelou minha carne e meus ossos tecendo-os novamente parte a parte, recriando em mim um novo conceito. Por um lado, vez e em teses, Maria deu-me o sopro, a vida, rearranjando-me em usos e desusos.
                Aquela senhora de olhos azuis recriou-me para seu marido que voltaria da guerra: pura ilusão para uns, uma verdade tangível para ela. Antonio não voltaria, mas o cuidado e o amor que pusera em mim, tricotaram em meu rascunho a serenidade de uma existência em paz.
                O outono se dissipou em branco e as flores se desfiaram por cima do sol. Assim, estava da forma certa para o casal que só existia no porta-retratos e no músculo pulsante da velha mulher. Embebida em um amargo suco, cortou-me novamente as formas e construiu-me em nova aparência.
                - Que diabos, mulher! – pensava com gritos afogados nas agulhas metálicas de seu sonho, ou devaneios sensíveis.
                Quando veio seu pranto, enxuguei-o, sem precisar falar um só A. entendi naquele instante que o envelope amarelado, em cima da lareira, agora queimava para aquecer sua solidão, que dali em diante passaria a ser sua amiga constante.
                Depois daquele envelope aberto e queimado, Maria se foi e sua casa invadida pelos poucos que sabiam que ainda morava ali. E como se nada precisasse ser anunciado, um garoto tomou-me pelo corpo inteiro.
                - Toma-me! – pensei que com ele os dias se abririam em novidades terríveis, mas eu queira esse risco, era quase um desejo obsessor.
                - Bella! – disse olhando-me despida.
                Ângelo pôs a mão em meu ventre, peito e nunca mais me largou... Até o instante em que partira deixando-me na casa de Carmem, portuguesa farta de ancas e pele. Dona de um pensionato em Lisboa recebia os mais estranhos pagamentos por hospedagem. Não seria de estranhar receber-me, também.
                - Ora gajo, que tu tens aí?
                Angelo relutou, porém tentou falar com seu português italianado, que nada poderia oferecer, a não ser quella biancha.
                Carmem recolheu-me meio desdenhosa de que cumpriria meu papel, entretanto deixou as três noites de Angelo em troca de meus usos e desusos. Nunca mais senti o corpo daquele italiano cheirando a amêndoas torradas, em meio às tardes douradas sicilianas.
                A vida não me perdoou por odiar Carmem, e a maldita também não simpatizava com minhas feições, porque tinha um coração e tive amores, coisa que jamais conhecera.
                No dia em que deixei a pensão suja da portuguesa quebraram garrafas, mesas, copos e o vinho enlameou todo salão.
                Veio o silêncio de dias e ao acordar deparei-me em um escuro sem tamanho. Um rapaz de vinte e poucos anos me olhava e sorria. Uma luz forte travou-me os sentidos. Tentei dar vida ao novo corpo que me abrigou. Eram novos tempos. As mudanças precisavam encontrar o seu arranjo exato, dentro daquele outro compasso.
                Pior que o timbre português da velha, era não saber quem me tomava agora, contudo o que ele sentia por mim era paixão e esmero. Fui deixando-me ir, até o dia que compreendi:
                - Vou pegar essa aqui, João!
                - Não! Essa não!
                - Por que essa não?
                - Porque essa eu comprei em um brechó de Lisboa. Estimação!
                - Ih! Está com um furinho aqui.
                -Onde?
                - Aqui...
                O rapaz abriu e tocou minha pele branca, fazendo-me arrepiar as linhas. Segurou-me pelos ombros, sorriu e disse:
                - Bella!
                Suspirei contente e saudosa:
                - Ai, Angelo!